Na manhã seguinte, o sol estava forte e os pássaros cantavam alegremente sobre
as árvores. Alannah acordou com a claridade no rosto e se assustou ao ver que
Kenzie dormia ao seu lado. Observou-o um pouco; ele estava tão sereno... Era
encantador.
Ouviu
baterem à porta e foi atender. Era Stefan Paleeve.
- O
senhor por aqui... A que lhe devo a honra da visita?
-
Quero falar com meu filho – respondeu, de forma rústica. Alannah permaneceu
imóvel. – Ande, não tenho o dia todo.
-
Senhor, porque acha que ele está aqui?
- Por
que o procurei por toda... Aliás, não é da sua conta, mocinha.
-
Bem, eu sinto muito, mas ele não está aqui.
Ignorando
a resposta, Stefan empurrou Alannah e entrou junto com seus dois capangas.
Procurou por toda a casa, até finalmente chegar ao quarto onde Kenzie estava
dormindo. Puxou-o pelos cabelos.
- O
que está fazendo aqui, seu idiota? Sua noiva morre tragicamente e você vem
passar a noite com uma outra qualquer?
Kenzie
estava sonolento, não entendeu de imediato o que estava acontecendo e, em meio
aos olhares do pai e de seus ajudantes, tentava compreender a situação. O pai
deu-lhe um tapa no rosto.
-
Responda-me! O que faz na casa dos Sovereignsun?
- Eu
não sei, pai – respondeu, levando a mão ao local do tapa. – Mas não se atreva a
chamar Alannah de outra qualquer mais uma vez, ela não é uma qualquer. Ela é o
amor de minha vida, com quem sempre tive vontade de ficar ao lado para sempre.
Num
súbito acesso de fúria, o pai começou a tapeá-lo e a gritar nomes terríveis;
ele apenas tentava se defender. Alannah entrou no quarto e, ao ver o pai
batendo nele, foi possuída por uma ira que quase não cabia dentro de si.
Imediatamente se pôs a bater e arranhar o velho, e após levar alguns golpes e
ser empurrada novamente, pulou sobre ele e agarrou suas costas. Começou a puxar
seus poucos fios de cabelo, arrancando tufos e deixando em seus lugares buracos
que logo começavam a sangrar.
Assustados,
os capangas de Stefan se aproximaram para ajudá-lo, mas foram jogados para
longe por uma força invisível. Bateram na parede e caíram desmaiados no chão.
Alannah
soltou o homem e ficou imóvel com o olhar fixo nele. Ele caiu no chão e tentou
se arrastar para longe dela, mas não pode, pois suas pernas estavam presas,
como se ali houvessem correntes que apertavam e imobilizavam-nas. Estava
completamente aterrorizado, soltou um urro de dor. Implorou a ajuda do filho,
que assistia à cena, horrorizado, mas não obteve resposta, apenas um olhar que
se traduzia como “Depois de tudo, como tem coragem, pai?”.
Ela
se abaixou e se aproximou de Stefan. Como uma cobra preparando-se para o bote,
rodeou-o e olhou-o nos olhos por um tempo. Kenzie também se abaixou e se pôs na
frente do pai, implorando que Alannah não o machucasse. Não era ela quem estava
no controle de seu corpo, mas graças ao olhar angustiado de Kenzie, conseguiu
tomar o controle, ficando atônita.
Quando
Sally chegou em casa, estranhou a porta aberta. Deixou a bolsa na porta e
correu até o quarto de Alannah para verificar. Teve uma repulsa ao ver aqueles
homens caídos ao chão, mas espantou-se mesmo com o fato de um deles ser o
senhor Stefan Paleeve.
- Oh
meu Deus, o que aconteceu aqui?
- Ele
precisa de um atendimento agora!
-
Está bem, está bem. Ajudem-me a levá-lo até lá fora.
Os
três juntos carregaram o corpo até o coche e levaram-no até a casa do
curandeiro da vila, Dante Tricky. Deitaram-no em uma cama.
- Ele
foi atacado por...
Eles
se entreolharam, por fim, Kenzie foi quem respondeu.
- Foi
um urso. Não faço ideia de onde ele veio... Eu estava desarmado.
-
Entendo. Os animais estão se aproximando bastante dos povoados. Bem, vocês
terão que deixá-lo aqui para que eu possa fazer o ritual completo da cura. De
manhã mando chamá-lo, senhor Paleeve.
-
Mande também a conta. Ficarei muito grato, Dante.
Dante
sorriu e eles saíram. Voltaram para a casa de Sally e acomodaram-se na sala de
estar. Passaram alguns minutos em silêncio.
-
Alannah, pode me explicar que diabos foi aquilo? – Kenzie perguntou,
levantando-se.
- Eu,
eu... Eu não... Eu não sei, Kenzie – ela começava a gaguejar, com terror nos
olhos. – Era como se... Co-como se não fosse eu, entende? Não... Não era eu. Eu
não seria capaz de fazer isso. Eu juro!
-
Acredito em você – disse ele, com uma expressão facial duvidosa.
-
Kenzie - continuou, levantando-se também -, olhe em meus olhos e diga: acha
mesmo que eu seria capaz de fazer aquilo?
Ele
permaneceu quieto e tia Sally interveio.
- Foi
você, Alannah? Quero dizer...
- Tia
Sally, foi meu corpo, foi algo dentro de mim. Eu nunca faria...
- E
eu tentava me convencer de que isso não aconteceria.
- O
que? – Perguntaram os dois ao mesmo tempo.
-
Sentem-se, queridos, vou lhes contar uma história – eles obedeceram. – Há
quarenta anos, nasceu uma garotinha chamada Dorothea. Era uma garota bela e
meiga. Quando cresceu e se casou, após muitas tentativas e preces, descobriu
que não podia ter filhos, e esse era o seu maior sonho, sua prioridade na vida.
Num dia de manhã, um velho misterioso bateu à sua porta e lhe pediu que o
encontrasse naquela mesma noite, em um galpão ali perto, pois tinha um assunto
muito importante a tratar. Um assunto de grande interesse de sua parte. Sem
conter a curiosidade, ela compareceu ao encontro, escondida do marido. O homem
lhe disse que era um poderoso mago e que poderia ajudá-la a ter uma filha, e
que em troca desejava apenas uma coisa: sua alma. Dorothea hesitou a princípio,
mas sua vontade de ter uma filha era maior que tudo. Selou então o pacto, sem
saber que o velho na verdade era Lúcifer. Passados os nove meses, a criança
nasceu; era uma linda garotinha. No mesmo dia, seu marido faleceu de forma
estranha. Aturdida, voltou à casa dos pais, os quais também vieram a falecer
alguns dias depois. Dorothea, que sempre fora religiosa, foi à igreja procurar uma
explicação para o que vinha acontecendo e descobriu que enquanto estivesse
perto de sua filha, onde quer que fosse, quem as acolhesse morreria. Como a
alma de Dorothea agora pertencia a Lúcifer, a filha havia sido amaldiçoada. Sua
garotinha era a filha de Lúcifer. Foi então que Dorothea entregou a filha para
uma cunhada, para amenizar o sofrimento da vida da garotinha. Mas nesse ponto,
tudo o que apresentasse perigo ou sofrimento para a criança ou alguém próximo
dela, seria extinto por suas próprias mãos, por mais que sua alma seja boa. Ela
nunca pode e nem poderá viver entre pessoas falsas e com maldade no coração. –
E terminou, lentamente: - E essa garota é você, Alannah.
Todos
estremeceram ao ouvir a última frase, e, com terror, assistiram à tempestade que
começava a cair do lado de fora da casa.